Marchar tem a única coisa que ao sistema ainda escapa: o uso humano e saudável do nosso corpo.
A Marcha das Margaridas é uma das ocasiões em que a proposta de um outro projeto de nação invade o centro de poder do Brasil. O silêncio de grande parte dos veículos de comunicação tradicionais sobre isso apenas mostra o grande potencial revolucionário dos corpos daquelas bravas mulheres que marcharam clamando por um mundo livre de opressões. Na Coluna Sororidade em Pauta desta semana, convidamos uma grande mulher, militante, negra, feminista para contar sobre a participação dela na Marcha das Margaridas. Com a palavra, Roberta! (Gabriela Lenz Lacerda).
Há aproximadamente um mês vi Brasília florescer. Brasília! A cidade proibida. A cidade garantida. Floresceu! Apesar disso, o Congresso Nacional, pela primeira vez em 20 anos, não reconheceu as 130 mil margaridas que estavam na sua frente.
Ainda assim, vi o Brasil florescer. Floresceu em meio ao clima seco daquela capital construída a sangue e a tantas mãos negras e nordestinas. Mãos tais quais as mãos das margaridas que marcharam e que agora, seguravam faixas, tocavam tambores de latas, cantavam e coloriam com as cores de todos os orixás a cidade que as recebia com cartazes das cores da bandeira nacional e dizeres a favor da reforma da previdência. Eram as únicas cores em meio ao branco e pálido Congresso Nacional. Tudo isso, assim como no poema de Drummond, intitulado a Flor e a Náusea, me fizeram ficar em completo silêncio, paralisar e renovar a esperança no que ainda pode nascer apesar das feridas da vida.
Em contraposição a um (des)governo que governa pelas redes sociais, em oposição à estetização da política em seu máximo grau e à hegemonia da imagem, do espetáculo, do parecer em detrimento do ser e fazer, o poder vital deste país estava lá, gritando, vivendo, lutando e se movimentando, no verdadeiro e mais importante palco: a rua.
O barulho dos pés em marcha no chão. As vozes unidas em canção. A concretização do humano naqueles braços, naqueles abraços, naqueles toques. Era dia de luta. Era dia de sorrir. Era dia de florir. De sentir. Sentir o calor do sol e o olhar da outra! O olhar! Olhar a outra não através da imagem ou da foto. Olhar a outra sem filtros, sem perfeição, sem edição. Era com suor. Com a cara limpa. Com os pés na terra.
Vi os corpos florescendo, levantando e caminhando em aliança. Cada uma daquelas mulheres era parte de vida e, diante dos olhos, todas elas juntas, eram a vida em sua totalidade. Desanestesiei o meu corpo e o levei pra sentir, para participar do mais belo e humano dos espetáculos: a vivência. O encontro do existir, no qual o corpo é inescapável.
É preciso dizer também com o corpo. Sentir com o corpo! Não dá mais pra pensar de forma dissociada do uso do corpo. O corpo é o querer fazer potência de mudança. Perguntaram: como só marchar pode mudar o sistema? Pois acredito que o marchar tem a única coisa que ao sistema ainda escapa: o uso humano e saudável do nosso corpo.
Na rua, em conjunto, o corpo se diz, diz que existe, diz que luta, diz que está, sangra, grita, berra e anuncia o que quer de forma concreta, para muito além de digitar, de postar, de teclar, de parecer ser e estar. Vamos furar a sociedade do espetáculo e espetacularizar a arte de florescer na rua. É hora de ser Margarida.
Bloquear o tédio, o nojo, o ódio e quebrar o asfalto pra existir. O corpo, se em conjunto fala no público, na rua, torna mais difícil o seu silenciar, o sequestrar, o negar. Creio que, se fizermos isso, no país inteiro mais de uma flor nascerá e não precisaremos esperar mais 4 anos para que, necessitando quebrar o asfalto, as margaridas floresçam.
Roberta Liana Vieira
Representante dos servidores negros no Comitê Pró-Equidade de Gênero, Raça e Diversidade do TRT4