Neste mês de outubro e até o final deste ano o Sintrajud inaugura uma série de reportagens sobre os 30 anos da Constituição de 1988. O projeto vai reunir análises de especialistas sobre os efeitos das 95 emendas constitucionais no processo de reorganização do Estado e na perda de direitos sociais e trabalhistas.
O objetivo é contribuir no debate sobre os desafios da luta por um Estado garantidor de cidadania versus o chamado “Estado mínimo”, voltado inteiramente para assegurar os interesses do capital em detrimento do trabalho.
Em um cenário de avanço conservador e promessa de novas mudanças constitucionais – com a conclusão da reforma previdenciária entre as prioridades do atual mandatário e do mais bem colocado candidato ao Planalto – outro objetivo é refletir sobre caminhos da organização sindical para enfrentar o próximo período.
Entre as primeiras entrevistas da série, trazemos o filósofo e professor da Universidade de São Paulo Vladimir Safatle. Colunista do jornal ‘Folha de S.Paulo’ e da revista ‘Cult’, Safatle é autor de Cinismo e falência da crítica (Boitempo Editorial), Fetichismo – colonizar o outro (Civilização Brasileira) e do recém lançado Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico, em coautoria com Christian Dunker e Nelson da Silva Jr. (Autêntica), entre outros títulos.
O filósofo destaca a ação do parlamento brasileiro para desconfigurar o projeto original da Constituição de 1988 no que ela tinha de mais avançado.
Perguntado a como avalia a realidade brasileira atual, o professor afirma considerar o avanço de um novo tipo de fascismo “um risco efetivo da sociedade brasileira”.
Confira abaixo a íntegra da entrevista exclusiva, concedida no dia 5 de outubro (portanto, antes do primeiro turno das eleições) ao Jornal do Judiciário.
Jornal do Judiciário – Noventa e cinco emendas depois, ou 105 se levadas em conta as emendas revisoras, o senhor avalia que ainda é possível continuar chamando a Constituição Federal de 1988 de ‘cidadã’?
Vladimir Safatle – Muito boa esta lembrança, porque se você fizer a conta são praticamente três emendas por ano. Se imaginar que uma emenda constitucional precisa de dois terços do Congresso Nacional, o que é uma negociação extremamente complexa, pode entender qual foi a função do parlamento durante todo este tempo. A principal função do Congresso [nesses 30 anos] foi desconstituir a Constituição, ao ponto de ela ficar muito distante do horizonte inicial. Nenhuma Constituição passa incólume depois de 95 emendas. E em sua maioria foram emendas que retiraram ou mitigaram direitos, ou liberaram o poder financeiro das amarras que a Carta original tinha tentado desenvolver.E em sua opinião quais são as mais importantes mudanças constitucionais para a organização da sociedade brasileira?
A Constituição tinha uma proposta de legislação sobre o sistema financeiro, até a questão do tabelamento de juros em 12%, que foi completamente apagada do horizonte. E há uma aberração ainda maior, que são as disposições constitucionais que nunca passaram a leis ordinárias, como o imposto sobre grandes fortunas – que é o único com previsão constitucional e depois de 30 anos sequer foi implementado. A gente tem uma Constituição com várias leis, de certa forma, suspensas. São leis sem força de lei. O que diz muito sobre a sociedade brasileira.E em relação à crise social que se abriu, para alguns analistas já a partir de 2013 e para outros com marco em 2015, o senhor compartilha da análise de que este processo resultou no esgotamento da validade do pacto da Nova República. Mas, diante disso, têm surgido desde propostas de uma nova Constituinte até uma revisão constitucional feita por um ‘conselho de notáveis’. Qual a sua avaliação sobre a necessidade e possibilidade uma constituinte no próximo período?
O fato é que uma constituinte neste momento com certeza daria uma representação muito distorcida da sociedade brasileira, porque a gente está numa situação completamente anômala. Pegue a composição da próxima Câmara. Ela vai expor a força de lobbies que estão super representados em relação ao que realmente são na população. A bancada evangélica, só, agora, tem 80 deputados [NOTA DA REDAÇÃO: Na próxima legislatura a bancada evangélica será de 180 deputados]. Proporcionalmente não temos esse percentual de evangélicos no Brasil. A bancada da bala, a do boi ou ruralista, todas estão super representadas, enquanto vários setores da vida social estão sub-representados. Como os homossexuais, as mulheres. O Brasil tem apenas um deputado que assume essa pauta [LGBT].Tudo isso demonstra que, para que se pudesse ter uma constituinte minimamente representativa do país teríamos que modificar radicalmente o sistema eleitoral, o que não é o caso agora. Então, há uma situação bastante complicada. De fato a gente sabe que essa é uma Constituição que já na sua aprovação tinha muitos defeitos. A parte de segurança nacional, o capítulo de segurança, é praticamente a cópia da Constituição de 1966. Ela já era uma formação de compromisso bastante frágil. E agora seria ainda mais problemático pensar numa constituinte.
O senhor tocou num elemento importante. Desde a sua aprovação a Constituição de 1988 tem uma concepção de pacto social e de compromisso bastante complicada. Alguns avaliavam que já era fadado ao fracasso desde o início. Gostaria que o senhor falasse mais da sua leitura do texto constitucional de origem neste sentido.
Ela é expressão dos impasses da Nova República, já anunciava seus impasses. A Nova República foi um sistema de conciliação produzido para explodir, durou até tempo demais. Nenhum país saiu de uma ditadura como o Brasil. O fim de uma ditadura implica uma obsolescência dos atores políticos a ela vinculados, e isso não aconteceu no Brasil. Então, é claro, a Constituição, se por um lado tinha avanços inegáveis, por outro tem o capítulo das forças armadas que é uma aberração completa. Em qualquer padrão de democracia liberal você dar ao Exército a função de garantidor da ordem é uma aberração completa. Então, a Constituição já expunha o horizonte no qual tudo isso ia acabar.Na solenidade de comemoração dos 30 anos da Constituição, o ministro Marco Aurélio destacou que os direitos fundamentais são o centro da Carta Magna, num momento em que o Brasil vem questionando fortemente tais direitos, em troca de uma suposta promessa de segurança. Como o senhor avalia este cenário. Alguns analistas falam em fascismo, ou um novo tipo de fascismo, como senhor avalia a realidade atual?
Eu lembro que o fascismo imperou com a Constituição de Weimar. Ninguém precisou suspender aquela constituição. Só usaram o artigo 48, do estado de exceção. Nenhuma lei consegue segurar, defender ou garantir direitos. O que garante direitos não é a lei, mas as forças sociais e composição destas no campo político. E que as leis são torcidas e distorcidas ao bel prazer destas forças a gente sabe muito bem. Considero que este é um risco efetivo da sociedade brasileira. O que nos espera é algo que – vejamos, o mundo todo pode estar errado, todos os jornais do mundo inteiro, toda a imprensa do mundo inteiro, são unânimes em dizer que o que nos espera, aparentemente é uma aberração sem tamanho. Só o Brasil não está enxergando, só uma parcela da população brasileira não está vendo isso.A gente viu muito claramente, pelas declarações, pela ausência de planos, pela maneira como essas eleições foram conduzidas. É uma eleição sem eleição…
É. A política foi desconvidada.
Exato. E o candidato [que está à frente] se escondeu completamente, não estava presente. Quando dava declarações eram declarações completamente atravessadas, quando perguntado sobre questões fundamentais do Estado brasileiro, desconversava ou falava para conversar com seu economista, que foi desautorizado várias vezes. Então, percebe-se que não há nenhum esforço de expor suas proposições. É alguém que, se ganhar, vai ganhar porque recebeu uma facada, e porque soube mobilizar todo um medo de parte da sociedade brasileira contra a mobilização de setores vulneráveis – as mulheres, homossexuais, negros.