A Comissão de Constituição e Justiça (CCJC) da Câmara dos Deputados nomeou Leonardo Picciani (PMDB/RJ) como relator de dois recursos contra a tramitação de propostas de emenda constitucional na Casa enquanto o Estado do Rio de Janeiro estiver sob a intervenção federal militarizada. Picciani é presidente estadual do PMDB fluminense, legenda do presidente Michel Temer (que tinha como principal plano de governo a reforma da Previdência) e defensor da intervenção acordada com o governador da mesma sigla, Luiz Fernando Pezão.
Os recursos na CCJC foram motivados por autorização do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM/RJ) à tramitação de PECs nas comissões, incluindo a principal delas, que discute a constitucionalidade de proposições. No entendimento dele, os textos só não poderiam ser votados em plenário. No entanto, o parágrafo 1º do artigo 60 da Constituição proíbe mudanças no texto da Carta sob intervenção federal, estado de defesa ou de sítio. Com base neste artigo foi suspensa a tramitação da PEC 287-A/2016 e o Senado também sustou a apreciação de outras 536 PECs enquanto durar a intervenção, considerada uma quebra do pacto federativo.
As duas PECs para análise na CCJC são a que insere cuidados e internações de longo prazo entre os direitos da Seguridade Social (348/2017) e a 410/2018, que altera o artigo 5º da Constituição para rebaixar o princípio da presunção de inocência à condenação em segundo grau – adequando o texto da Carta Magna às últimas decisões sobre o assunto no Supremo Tribunal Federal.
O questionamento à tramitação foi iniciativa dos deputados Maria do Rosário (PT/RS) e Miro Teixeira (Rede/RJ). Para Rosário, a proposta de emenda constitucional que trata dos cuidados prolongados tem um conteúdo muito importante e sem divergências, mas poderia ser debatida por meio de projeto de lei. Já o tema da prisão após condenação em segunda instância fere a presunção de inocência estabelecida na Constituição de 1988 até o trânsito em julgado. O STF também ainda voltará a se debruçar sobre o tema.
Ouvida pela reportagem, a deputada Maria do Rosário afirmou que “eles não têm os votos necessários [para votar a reforma da Previdência], mas estão fazendo pesquisas internas para avaliar a situação”.
Embora no caso da PEC287-A/2016 a situação seja mais complicada, porque a mobilização de centenas de categorias e a proximidade do calendário eleitoral inviabilizaram que o governo obtivesse os 308 votos necessários para votar o texto em dois turnos, a direção do Sindicato ressalva que é importante não baixar a guarda. Regimentalmente a ‘reforma’ da Previdência está pronta para análise em plenário. E o presidente Michel Temer já sinalizou com a possibilidade de suspensão da intervenção federal para votar a ‘reforma’ considerada incontornável pelo mercado. Havendo tramitação de outras mudanças constitucionais e passadas as eleições pode ganhar força a tese de interromper a intervenção e botar a voto as alterações.
Quando assinou o decreto do Regime de Recuperação Fiscal do Estado do Rio, em setembro do ano passado, na condição de presidente da República interino, Rodrigo Maia também declarou que a situação do Estado evidenciaria a necessidade de uma reforma da Previdência. “Quando a gente olha os números, a gente vê que sem a reforma da Previdência, sem discutir de forma clara os gastos, nós, em breve período, teremos situação a nível federal muito parecida com a situação que o Rio tem”, afirmou ao Portal do Planalto. Cinco meses depois, Maia também defendeu a intervenção militarizada, que foi vista como uma cortina de fumaça à derrota do governo na movimentação para aprovar a PEC 287-A.
Segurança institucional: mais um ponto contra a intervenção militar
A insegurança em torno ao funcionamento do Estado é mais um dos diversos questionamentos ao decreto 9.288/2018. Crítico da intervenção, o juiz do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) André Nicolitt aponta que o impedimento do pleno exercício do Poder Legislativo aumenta os problemas criados pela medida extremada em curso.
“Toda vez que uma medida dessa natureza é aplicada sem que se observe a estrita necessidade, você tem uma fragilização do Estado Democrático de Direito – que respeita o pacto federativo, a Constituição, as leis e a autonomia dos estados. Ademais disso, traz consequências para o funcionamento do Estado na medida em que impede o pleno exercício do Poder Legislativo. As assembleias, a Câmara dos Deputados e o Senado não podem votar e nem tramitar uma emenda sob intervenção federal”, afirma o juiz.
Nicolitt destaca ainda que a inédita intervenção em andamento subverte inclusive o caráter constitucional do cargo de interventor a partir do momento em que presidente Michel Temer decidiu nomear um militar de carreira para a função – o general Braga Netto. “Não se trata de uma intervenção militar, é uma intervenção federal, decretada pelo Presidente da República, cujo interventor poderia ser um civil. Mas por opção política, e talvez ideológica, do presidente ele optou por indicar como interventor um militar e tentar, de uma forma até inusitada, atribuir ao cargo a natureza militar. Mas o cargo, constitucionalmente, tem natureza cível.”
Disputa por recursos afeta áreas sociais e funcionalismo
A reportagem ouviu também a antropóloga Jacqueline Muniz, professora da UFF. Pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ela foi diretora do Departamento na Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e assessorou a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Especialista e ex-gestora da área naquele Estado, Jacqueline considera a intervenção atual “um teatro” que não resolve o problema e gera uma disputa por recursos que leva a sociedade a subordinar direitos sociais a uma fictícia sensação de segurança.
“Acaba se estabelecendo uma competição predatória por recursos, seja na gestão pública, seja pela quase imposição de trocar direitos sociais por alguma liberdade, algum direito civil. Está se trocando o cotidiano da segurança pública por operações especiais de visibilidade, e uma disputa por recursos ao invés de uma política pública de segurança de fato. Isso é típico de situações em que você tem governos ilegítimos e impopulares, que não têm como produzir adesão ao seu projeto de poder e substituem isso por mecanismos coercitivos e repressivos. Isso não quer dizer que haverá controle da violência”, aponta a especialista, que integrou a equipe de implantação do policiamento comunitário no Estado fluminense.
De fato, os índices de violência não se reduziram nos primeiros dois meses da medida, havendo inclusive o crescimento de tiroteios, mortes de policiais e roubos em geral. Enquanto isso, o governo federal afirma que o investimento nas operações sob comando do general Braga Netto dificultam ainda mais a autorização de reajustes ao funcionalismo e à realização de concursos públicos.
Apesar da especialista ressaltar que o R$ 1,2 bilhão prometido pelo governo federal para sustentar a intervenção prevista para durar até dezembro deste ano “é um fiasco. A intervenção na [favela da] Maré, em 2015, custou quase R$ 600 milhões. Como não se tem um plano de segurança ou de intervenção, vai se continuar mais uma vez privilegiando licitações para lá e para cá sem que se produza resultados significativos”. Para a pesquisadora, a opção foi pelo “rendimento eleitoral”.
“É necessário lembrar que o Rio de Janeiro, desde o Pan-Americano, recebeu bilhões em recursos por causa dos grandes eventos e não ficou nenhum legado para a segurança. E também é necessário recordar que antes da intervenção militar houve uma intervenção econômica, porque para receber qualquer migalha do governo federal o Estado teve que se adequar às exigências [cortar despesas, privatizar a Cedae, aumentar a alíquota previdenciária dos servidores estaduais e instituir um programa de demissões incentivadas, entre outras medidas]”, aponta Jacqueline Muniz.
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